Este blog tem o objetivo de mostrar que defensores de animais são contrários ao racismo e quaisquer formas de preconceito e discriminação.

terça-feira, 30 de outubro de 2007

O caso "Holocausto Animal" vs. "ABC sem Racismo", por Renata Octaviani

[entre colchetes explanações do blog]

Em 21 de outubro de 2007 a ONG "ABC sem Racismo" ingressou com representação perante o Ministério Público do Estado de São Paulo alegando que o site Holocausto Animal, por meio de seu representante Fábio Paiva, havia ofendido a memória de negros e judeus com a elaboração de dois cartazes de conscientização contra o especismo.
Por meio do site Afropress, a ONG manifestou-se alegando que se tratavam de "comparações bizarras e atentatórias à memória dos negros exibindo a imagem conhecida da Escrava Anastácia, personagem lendária e considerada santa pela devoção popular brasileira, colocada ao lado de cães com focinheiras."
Mas não somente as fotos foram entendidas como ofensivas como a ONG ampliou a [sua]interpretação de tal maneira que entendeu como prática de crime de apologia à escravidão e ao holocausto.
O que começou com uma troca de e-mails entre ativistas pelos animais e a ONG acabou virando uma troca de farpas, incluindo até mesmo defensores dos animais dando razão para a ABC sem Racismo.
Inicialmente, comentários foram enviados explicando tratar-se de um paralelo sem nenhuma conotação racista. Sim, algumas pessoas se excederam, mas sei de pelo menos um caso em que esse excesso foi corrigido em e-mail posterior e substituído por argumentos, sem que a ONG considerasse justamente essa correção, publicando apenas a primeira mensagem. Ainda, tive acesso a uma grande quantidade de textos enviados por e-mail, respeitosos e bem fundamentados, e que não tiveram qualquer resposta ou publicação.
Ainda, a ONG publicou resposta padrão em todos os comentários contrários à representação, classificando como "disparatadas teses que pretendem colocar no mesmo patamar animais irracionais e seres humanos.", o que eu também considero ofensivo à filosofia do grupo (e, por isso, pedi um direito de resposta que foi sumariamente ignorado).
Entre as mensagens de apoio, há até mesmo quem tente equiparar a situação a preconceito contra religiões de origem africana por praticarem sacrifícios com animais (sim, defensores dos animais são contrários a sacrifícios, mas ir contra um ritual específico não pode ser entendido como preconceito contra a religião ou tradição como um todo).
A história culminou com a publicação do editorial "A fúria vegana e o nosso direito", acusando a ativista Gabriela Toledo, presidente do PEA, de envio de um e-mail com ameaças concretas. O PEA, entretanto, negou veementemente a autoria desse comentário (e isso também não consta no site da entidade).
Por tudo o que acompanhei, a ONG peca também por sua parcialidade e ocultação de todos os fatos. O fato é que hoje se formaram basicamente três facções:
a) Os defensores dos animais, alegando que não existe ofensa
b) Os integrantes da ABC sem Racismo e outras entidades que lutam contra o preconceito, alegando que há ofensa
c) Defensores dos animais alegando que pode haver ofensa mas não apologia à escravidão e ao holocausto [portanto, não justificam a denúncia feita ao MP].
O assunto povoa tópicos do Orkut, foram criadas cartas abertas, blogs de apoio e até mesmo um desagravo público em favor de Fábio Paiva. Enquanto isso, a promotoria ainda não se manifestou sobre o seguimento ou não da representação (ou mesmo se é ou não competente para a análise das peças veiculadas via internet).
Finalmente, o criador do site Holocausto Animal tentou se retratar e enviou um e-mail explicando que não havia qualquer intenção de ofensa e inclusive retirando os links para as imagens das páginas. Esse e-mail foi publicado - com o que eu entendi como irônico - título destacado em página oficial "Fogo amigo?" (com interrogação), sem direito a qualquer comentário adicional por parte da ONG.
Eu mesma sou descendente de negros (embora eu me pergunte: e quem não é?). Entretanto, sou vegetariana e ativista pelos direitos dos animais, conhecendo há tempos o trabalho do Fábio Paiva e inclusive referidas imagens que agora causam tanta polêmica. Infelizmente, entendo que as imagens foram tiradas do contexto ([eu, Renata Octaviani,] peço sua paciência e atenção para que leia esse artigo até o fim antes de tirar suas próprias conclusões) e isso pode trazer graves conseqüências a uma minoria ideológica, pacífica e filosoficamente estruturada, que defende nada mais do que o valor "liberdade" em toda a sua extensão.
Inicialmente, o veganismo (embora tenha sido tachado como radical de modo perjotativo) é uma doutrina que prega uma postura ética de não alimentação de carne ou quaisquer derivados animais. Também não se utilizam peles, pêlos, ossos, produtos testados em animais, entre outros.
Gostaria de citar famosa frase de Alice Walker:"Os animais do mundo existem por suas próprias razões. Não foram feitos para os seres humanos, do mesmo modo que os negros não foram feitos para os brancos, nem as mulheres para os homens."(Alice Walker)
Quem é Alice Walker? A escritora ganhadora de um Prêmio Pulitzer. Mais que isso, africana, filha de agricultores, graduada com muito esforço, e autora do mundialmente famoso romance "A Cor Púrpura", obra essencial que retratou a vida dura, pobre, oprimida e sem amor de uma negra sulista norte americana. Portanto, negra e ativista.
Alice Walker sente grande empatia pelos animais e enxerga o paralelo entre as próprias experiências com a discriminação e o modo como os animais são usualmente tratados. Tanto que prefaciou o livro "A terrível semelhança - Escravidão Humana e Animal" (tradução livre do original em inglês, The Dreaded Comparison: Human and Animal Slavery), da escritora Marjorie Spiegel.
Marjorie Spiegel fez esse pequeno porém corajoso livro em 1988 (portanto, há quase 20 anos!) revelando extraordinárias similaridades entre os dois sistemas de opressão (pode ser encontrado em sites como o Amazon, inclusive com acesso às primeiras páginas). Entretanto, não é popular, seguro ou conveniente a divulgação desse tipo de informação e a ameaça ao sistema econômico vigente, baseado em exploração dos animais ditos irracionais por parte dos seres humanos.
Esse livro, aliás, começa com a seguinte citação, proferida em 1776 por Dr. Humphrey Primatt, pastor anglicano: "Dor é dor, independente de ser inflingida ao homem ou ao animal; (...) O Homem branco... não pode ter direito, em razão de sua cor, a escravizar e tiranizar um homem negro... Da mesma forma, o homem não tem direito natural de abusar e atormentar um animal."
Em seguida, ela rebate magistralmente as razões pelas quais não se pode considerar de forma alguma a comparação de especismo com racismo como uma ofensa. Recomendo a leitura.
E a questão, realmente, é apenas essa. Dor é dor. Abuso é abuso.
Também gostaria de citar Martin Luther King, Jr (acredito que dispense apresentações) e sua esposa Coretta Scott King:
"A covardia coloca a questão, 'É seguro?'
O comodismo coloca a questão, 'É popular?'
Mas a consciência coloca a questão, 'É correto?'
E chega uma altura em que temos de tomar uma posição que não é segura,
Não é elegante,
Não é popular,
Mas o temos de fazer porque a nossa consciência nos diz que essa é a atitude correta."
(Martin Luther King Jr, 1929 - 1968)"
Promover os direitos animais seria a próxima extensão lógica da filosofia de não-violência de Martin Luther King, Jr."
(Coretta Scott King - 27 de abril de 1927 - 30 de janeiro de 2006)"
Gosto de lembrar que - embora Marthin Luther King não o fosse - Coretta, por influência de um de seus filhos, adotou o veganismo e o entendia como extensão da luta de seu marido.
Conheço bem a história de Anastácia e conta a tradição que foi forçada a usar a máscara de ferro - tirando-a apenas para se alimentar - por ter se recusado a manter relações sexuais com um senhor de escravos e acabou morrendo pelo abuso. Mas sei também que a máscara de ferro era colocada em homens negros trabalhadores em minas de ouro, para que não roubassem o metal precioso, engolindo-o. O que era isso? Determinismo. Escravos eram tidos preguiçosos e desonestos e era impensável na sociedade da época que se fizesse de outra forma.
Aliás, mesmo os negros alforriados e libertos tiveram seus direitos tolhidos por uma sociedade ainda preconceituosa, como magistralmente retratado nas primeiras cenas do filme brasileiro "Quanto vale ou é por quilo?". Volto a lembrar: na época na escravidão, negros eram vistos como "força trabalhadora". Mas não como seres humanos plenos e merecedores de dignidade. Infelizmente, o comum nem sempre é o normal, o natural e muito menos o justo.
Mesmo os Quilombos eram ilegais e tidos como subversivos e uma ameaça à economia e à ordem pública. Negros fugidos eram recapturados por capitães do mato com a maior violência possível e, quando devolvidos aos seus "donos", eram "disciplinados" e considerava-se restabelecida a ordem. Mas eu não conheço maior símbolo de liberdade que os quilombos e ninguém nega sua importância histórica no processo de abolição.
Entre os autores brasileiros, a filósofa Sônia T. Felipe desenvolveu seu projeto de pós doutorado em Bioética, com recorte específico em Zooética, apoiada pela UFSC. O seu argumento principal é que, na tradição ocidental (diferentes de muitas das tradições orientais, por exemplo) o animal sempre esteve ligado à utilidade para os negócios humanos, considerado como propriedade e nunca como indivíduo. É justamente contra essa idéia que luta o veganismo-abolicionista e é aí que repousa a semelhança e que não pode, de maneira nenhuma, ser encarada como ofensiva.
Há ainda outra frase famosa entre os ativistas:
"Em seu comportamento com os animais, todos os humanos são nazistas".
A conclusão é de Isaac Bashevis Singer, judeu-polonês sobrevivente do nazismo, vegetariano convicto e ganhador do Nobel de Literatura. Escrevia, inclusive, em iídiche. Será que podemos tachá-lo por preconceituoso ou será que sua própria experiência serviu como parâmetro para que conceitos pouco discutidos fossem repensados pelo autor?
Acredito que referida ONG jamais tenha tido acesso aos números dos Centros de Zoonose dos Municípios espalhados pelo Brasil. Acredito que jamais tenha estabelecido um diálogo com ONGs de defesa animal e visto os mais variados abusos sofridos por esses seres (os abandonados e também aqueles com "dono"). Que nunca tenha visto o horror de um teste Draize ou a dor e medo dos animais em um abatedouro. E somente isso, o desconhecimento, pode levar ao medo e a conclusões com essa que vemos na Afropress.
A título de curiosidade, e destacando que esses números se repetem a cada ano:
30 bilhões de animais são mortos por ano para experimentação científica
30 bilhões são mortos para alimentação
400 milhões para caça esportiva120 milhões para a indústria da moda
40 milhões para controle de zoonoses
(números oficiais, divulgados pela Sociedade Vegetariana Brasileira [www.svb.org.br]).
Infelizmente todas essas mortes (salvo raras exceções) são legalizadas, mas entendemos que não são justas. Ao mesmo tempo, não me vem à mente maior símbolo de abuso que a escravidão humana (e também o holocausto). São símbolos universais pela busca da liberdade, inclusive de animais não humanos.O que o site "Holocausto Animal" fez foi apenas usar esses símbolos de luta pela liberdade. Ninguém, em momento algum, "rebaixou" a condição dos seres humanos.
Aliás, a Afropress divulgou que, na foto envolvendo a memória dos negros, o paralelo é feito entre a Santa escrava e "um cão usando focinheira". Peço atenção para esse ponto: de fato, é uma fotografia clara de maus tratos pois o cão está com uma lata de conservas (acredito já tenham visto o interior de uma lata de conservas abertas e constatado como é cortante) enterrada em seu focinho, o que certamente lhe causou muita dor física. Mas quase ninguém percebeu isso e ninguém da ONG discutiu esse fato. É realmente irrelevante que uma comparação seja feita não com um cachorro, mas com um cachorro torturado e outra não com porcos, mas porcos assassinados?
Não sou mundialmente famosa, tenho pouca voz, não dirijo uma ONG, mas faço minha parte na luta contra as mais diversas formas de desigualdade. E defender os direitos dos animais no Brasil - terra da feijoada, do sarapatel, das peixadas, do churrasco, da farra do boi, dos rodeios - certamente não é popular e não é elegante. Mas é necessário.
Somos, inclusive, contrários ao sacrifício de animais, sim (e notamos por acórdão proferido no Rio Grande do Sul em voto do desembargador Araken de Assis que o sacrifício de animais para práticas religiosas acabou mantido a partir de um paralelo feito com o abate para consumo humano. Mas nós somos contra o abate para consumo também, não fazemos distinção). Mas não vamos contra uma religião específica e sim contra uma prática específica (também não somos simpáticos a perus e porcos mortos para a ceia - costumamos sugerir ceia sem carne para as pessoas - e nem por isso vamos contra a comemoração do Natal em si).
Trata-se de um movimento filosificamente estruturado e com defensores diversos, contando com intelectuais, artistas e profissionais de todos os tipos. Há até mesmo a organização "Black Vegetarians", fundada por mulheres negras norte americanas e pode ser consultada no link http://www.blackvegetarians.org/index.htm
Não estamos "humanizando animais"; apenas clamamos para que sejam tratados como animais, como seres vivos, com características próprias, dotados de sensibilidade e até mesmo estrutura familiar, demonstrações de afeto, memória e consciência. Hoje em dia, são tratados como coisas, como propriedade, como objetos de estudo e pedaços de carne.
Entenda-se, não se pode ler "Para os animais, todos os humanos são nazistas" como "Para os vegetarianos, todos os judeus e negros são animais." (inclusive adotando-se "animal" no sentido perjorativo). Essa é uma inversão lógica inadmissível! Assim com tomar a imagem de porcos e cães no sentido perjorativo se a filosofia do grupo que veiculou a imagem certamente não admite essa conotação.
No mais a questão é: por que é um insulto ser comparado a um animal? Que valores são levados em conta ao tomar "animal" como um termo perjorativo? Não somos animais? Nossa racionalidade nos dá poder de bem estar, vida e morte de outros seres ou deveria nos trazer mais responsabilidade e consciência?
As resposta vão indubitavelmente de encontro ao sistema de crenças que eu e diversos outros ativistas combatemos, chamado especismo. Nós já partimos do ponto de vista de que animais não são inferiores. São simplesmente diferentes em muitos pontos, mas semelhantes em outros. E isso por si só desqualifica a representação encaminhada, já que a imagem foi completamente distorcida ao ser retirada do contexto filosófico em que se insere.
Mesmo que não se concorde com esse sistema de idéias, é evidente que não há qualquer apologia à escravidão ou desrespeito.
A medida tomada pela ONG, do meu ponto de vista não é equilibrada. É, sim, discriminatória contra um grupo que luta pela liberdade de animais que perderam o direito até mesmo de serem animais.
Concluindo:
a) imagens de escravos e do holocausto são símbolos de abusos e ao mesmo tempo símbolos de luta pela liberdade;
b) o veganismo é uma orientação filosoficamente estruturada e que luta pela liberdade de uma forma ampla;
c) a imagem foi indevidamente tirada desse contexto filosófico e simbólico;
d) independente de se concordar ou não com o veganismo e "Libertação Animal", a imagem dentro do contexto não pode ser encarada como ofensiva e muito menos como apologia à escravidão.Nesse contexto, é evidente que a comparação com porcos e cães é meramente circunstancial;
e) Entender a imagem de porcos e cães como perjorativa é fruto dos próprios preconceitos e jamais foi a imagem passada pelo site.
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Afropress:
Artigo original e links para comentários: http://www.afropress.com/noticias_2.asp?id=1371
Resposta padrão aos comentários contrários: http://www.afropress.com/palavra_do_leitor_2.asp?id=836
Editorial "A Fúria Vegan e o nosso direito": http://www.afropress.com/editorial.asp
Manifestação de Fábio Paiva: http://www.afropress.com/noticias_2.asp?id=1378
Cartazes polêmicos:
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